terça-feira, 19 de novembro de 2013

Histórias, ou A cura pelo plantio de poemas íntimos

"Conhecer histórias é psicologicamente terapêutico per se. É bom para a alma. Os discursos econômico, científico e histórico são modalidades de histórias que frequentemente fracassam na tentativa de dar à alma aquele sentido imaginativo que ela busca, para a compreensão de sua vida psicológica." - James Hillman

Sementes
Era uma vez uma sensação. Ela vinha toda vez que eu lia um mito, um conto de fadas, uma fábula. MAs ela vinha também quando eu conversava com amigos, quando lia um jornal ou um livro de história. Se eu pudesse descrevê-la fisicamente seria como um dedilhar íntimo, um toque na alma.

É claro que a sensação variava de acordo com o que estivesse preenchendo minha alma naquele momento. Haviam nítidas unhas rasgando as minhas entranhas quando minha vida estivesse girando ao redor de ruminar fracassos, assim como um carinho singelo no peito quando eu estivesse me despedindo de um ente querido ou de uma fase da vida que já não é mais minha.

A identificação com as histórias leva a isso. A essa sensação íntima que, com o tempo, tende a se transformar em sentimento, em pensamento, talvez até intuição. Conhecer histórias é terapêutico porque nos leva a conhecermos melhor a nós mesmos.

Mudas

Muitos dos nossos sentimentos, pensamentos e intuições mais profundos são bloqueados pela velocidade alucinante do nosso cotidiano. Então vamos ao cinema, lemos um livro, paramos numa mesa de bar para conversar com nossos amigos. O que há de comum nesses momentos? Esperamos que nos contem histórias, que nos tragam um mundo que não nos pertence para que possamos, com a devida distância, observar - quase que como um pressentimento - o que daquilo tudo nos toca e nos diz algo. E se diz, com certeza, também é nosso, de alguma maneira.

Tanto é nosso que levamos para casa e deixamos que aquela situação, aquele pensamento ou mesmo até aquela palavra - que talvez não significasse tanto para quem a disse - se desenvolva dentro de nós e nos inquiete por dentro. É dessa inquietação que surgem as descobertas, as soluções mirabolantes, os "insights".

Troncos
Nenhuma idéia genial veio de uma mente tranquila. Quem conhece bem os meandros e as batalhas mentais com deuses descritos por Siddartha Gautama até que ele conseguisse atingir o Nirvana sabe muito bem disso! A mente criativa é um instante em que, no meio de um tornado, se vislumbra o olho do furacão. Dorothy que o diga!

Quem volta do mundo de "Oz", desse espaço das descobertas e das conclusões que nos permitimos quando saímos do lugar comum da repetição do cotidiano, nunca volta o mesmo. Quem volta da "Terra do Nunca" ou de "Nárnia" absorve tanta experiência em um espaço de tempo tão minúsculo que é como se tivesse envelhecido sem envelhecer, é como se tivesse ganho a sabedoria sem ter tido a experiência. Para quem esteve lá, o tempo cronológico não passou.

Galhos
Absorve-se o conhecimento sem a maturação. É como se ativássemos um mecanismo ancestral dentro de nós mesmos e, a partir dali, uma nova fonte de energia e criação brotasse. Imagine, por exemplo, conhecer todos os mecanismos de roldanas, pesos e fontes elétricas que fazem um elevador funcionar. Imagine ser capaz de desmontar e remontar esse elevador, ou mesmo de criar ele a partir de peças soltas. É como aprender uma nova língua ou uma nova cultura, uma nova forma de ver o mundo através da qual, por alguma "mágica", tudo se tornasse mais real e, ao mesmo tempo, mais mágico. É tomar a magia da "criação de elevadores" para si.

Conhecer histórias, contar e vivênciar histórias é tornar-se o "Grande e Poderoso Oz", mesmo sabendo que não há magia e que quem souber olhar atentamente para o "truque" não verá truque nem mágico, mas sim um grande impostor, que se admite impostor - sem nenhum poder mágico real - mas que, ainda assim, faz a mágica dentro de nós!

Afinal, o Leão Medroso recebeu uma dose enorme de "coragem líquida" e tornou-se o rei dos animais, o Espantalho sem cérebro recebeu seu "novo cérebro" recheado de alfinetes e tornou-se rei da Cidade Esmeralda e o Lenhador de Lata recebeu seu "coração de almofada vermelha" e tornou-se o afetuoso guardião da cidade dos Quadlins.

Novas sementes
Conhecer novas histórias é tornar a vida psicologicamente rica e afetivamente saudável. Quem conhece a história do luto, as razões por trás das tradições do uso da cor negra, as formas de "beber o defunto" no interior do Brasil, as histórias por trás dos sepultamentos desde a pré-história, não foge da dor encapsulando a alma em soluções químicas ou farmacológicas. Quem conhece as razões do luto entra naquele estranho mundo da perda e, como recompensa, renasce transformado. Psicologicamente quem conhece o "era uma vez" da morte efetivamente faz a integração natural dos conteúdos significativos da experiência que tivemos em vida, com aquela pessoa.

Quem conhece histórias, ao invés do bate-estaca mórbido da ferocidade das ondas intermináveis de tarefas e dias, torna a vida uma poesia recheada de sempre novos significados.

por Renato Kress

6 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigado a você por ter lido e comentado, Geny! Pode compartilhá-lo com quem você quiser! Sempre!

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  2. Maravilhoso!!!!!! Desde a citação de James Hillman, até o ponto final de todo o texto, li sobre mim mesma!!!! Como é bom ler, ouvir histórias, ver filmes...eu sou uma viciada em sementes, devoradora de mudas, construtora de troncos e criadora de galhos!!! Esse é o meu mundo!!!!

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    1. Que gostoso ler teu comentário por aqui, Ana! É um prazer perceber que essas pequenas sementes dos nossos textos frutificam em novos prazeres e descobertas! :) Obrigado pelo carinho em comentar por aqui! Faz toda a diferença, porque fica para sempre na história do Blog! Comentários em redes sociais são esquecidos num limbo ao qual ninguém mais retornará, ao contrário do blog.

      Beijão!

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    2. Entendo perfeitamente!!!!!
      Fiz uma conta no gmail e agora sou seguidora, então isso ocorrerá com mais frequencia!!!!!!
      Parabéns pelo seu belo trabalho e pelos seus textos sempre maravilhosos!!!! É visível o quanto você se dedica em nos passar boas sementes!!!!! Rega quem for esperto!!!!!
      Sou sua fã!!!!! É sempre um prazer ler seus textos!!!!!

      Beijos!

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  3. Oi Renato! Mais um trabalho brilhante. Amo suas reflexões e o seu cuidadoso labor na escolha das palavras e de como ordená-las em belas imagens, como se estas fossem deliciosas frutas a serem saboreadas por nossas mentes. Obrigada.

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O blog "Mito e Mente" foi criado para ser uma espécie de "dicionário ensaístico" que englobe temas concernentes aos domínios da mitologia, literatura clássica, psicologia analítica (junguiana), cultura, pensamento social, arte, símbolos, religiões e filosofia.

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